quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

FAROL - poema 16


FAROL

Não consigo descrever a sensação de solidão que senti quando compreendi que estava no meu lugar; era cedo demais para entender o fardo da posse, ser dono de algo que não podia ser abandonado ou desapropriado, que devia ser guardado para sempre. Janet Frame


É que a noite tocou a todos pelo caminho,
como um homem toca o seu boi ao bebedouro,
e estão em suas casas guardados,
depois de beber calmamente.
E não há um pensamento sequer
sobre o que pode haver nesta hora em que falo:
As árvores escurecidas, como entes assombrados,
perdem a nitidez, qual tio amado que, agora
morto, faz mover as cortinas, faz insegura
toda a fiel casa da duração do dia,
nosso coração em sobressalto, atentos aos retratos
íntimos sobre os pianos –  qualquer sussurro
de um nome, uma tecla em desafino –, sorrindo,
os mortos e os vivos.  

Nada se move, é noite ainda.
Pois chega essa hora em que os objetos
perdem a comunhão conosco.
A casa é o que nos sobra, no escuro, por dentro,
trancados, quase pacíficos, esperando a hora
em que nossos irmãos respeitam o silêncio,
e eis que chega o sono como a insinuação da sorte:
Protegei-vos.  

Do outro lado da rua, uma casa do lado de fora
é inteira amaldiçoada, se nela
promiscuem-se as silhuetas das grades,
os pilares carcomidos,
as gaiolinhas de pássaros dormindo,
as trepadeiras em sombras
numa tela de musgos e fachadas.

Mas guardada está a vizinhança bendita,
e benditos os seus silêncios,
e os copos que não deixam cair ao chão,
os móveis que não arrastam,
os chinelos de pantufas no corredor do banheiro
e as dores contidas, sem um gemido sequer,
e os irmãos encolhidos sobre os abdomens.
Todos trocam cuidados.

É que para todos chega a hora em que é impossível
pensar a rua enegrecida,
para além das portas e janelas e vigilantes...
As praças desertas petrificadas, o quebra-mar infinito
como uma fortificação de nossa extensa península, e
a ansiedade de que padecem as avenidas vazias,
porque também numa guerra
os soldados dormem, invisíveis nas covas, entre pesadelos.

Estou agora a me mover pelos canteiros centrais até alcançar a orla.
Passo praças e o quebra-mar infinito nesse meu sonho vívido e só,
e o mar noturno que se recusa,
como a tudo ao que o olhar se esforça,
mas a nada distingue. Um navio mercante, uma baleia, o continente.

Fantasmagorias que impregnam a vida
e que são nossas – como um homem deixa
seu último hálito no cômodo em que se senta
com sua última consciência, gravados, ambos,
ali para sempre.

A noite não existe. Somos nós, massa indistinta.
E, ao final, os postes acesos guardam a promessa
de que tudo está ali, exatamente e
como sempre, passado o grande perigo que anulamos.

E assim, reacomodando nosso olho e nossa posse,
descobrimos, na manhã seguinte,
alguém a andar com nossas ideias de ontem,
e alguma coisa de um hálito, de um cômodo, ou marinheiro,
um traço seu antigo – de vida ou sentimento,
doendo na nossa alma e sem ter nome –,
que se mistifica na história que terá o dia.

Outubro, 2011


Ismael Nery - sem título

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